Quarta Parede

Blog de reflexão sobre teatro e dramaturgia.

Brevíssimo Historial do Teatro no Porto no Século XX

with one comment

Brevíssimo Historial do Teatro no Porto no Século XX

Por Isabel Alves Costa * e Paulo Eduardo Carvalho *

Pode dizer-se que aquilo a que hoje chamamos “O Teatro no Porto” nasce com o surgimento do TEP nos anos 50. Antes desta data, o Porto foi sobretudo espectador entusiasta de obras não só de Teatro, mas também de Ópera e Opereta, vindas de fora (quer de Lisboa quer do estrangeiro) e apresentadas sempre com enorme êxito nos espaços teatrais da época: o Teatro Sá da Bandeira, O Teatro Nacional S. João e o Teatro Rivoli. Para fazer este brevíssimo historial do que vem sendo o “Teatro no Porto” recuperamos um belíssimo artigo de Paulo Eduardo Carvalho, que, embora date de 1997, traça com acuidade aquilo que foi a actividade teatral na segunda metade do séc. XX. Cumpre-me apenas “corrigir” e acrescentar alguns dados recentes com o único objectivo de uma sumaríssima actualização deste texto. A primeira correcção prende-se com a não referência ao grupo de Teatro Rodaviva, que apresentou em finais de 1979 um espectáculo de João Lóio, com encenação de João Mota, intitulado Hoje começa o circo e que, visto à distância, pode ser considerado um percursor “avant la lettre” do chamado Novo Circo. As seguintes correcções prendem-se com a natural evolução da criação teatral na cidade. Nuno Cardoso deixou o Visões Úteis e é hoje Director do Auditório Nacional Carlos Alberto (ANCA), mantendo uma actividade independente como actor e encenador. José Wallenstein substituiu Ricardo Pais na direcção do TNSJ, a partir de Setembro de 2000, mantendo no entanto a sua filosofia. Entretanto novos grupos nasceram, nomeadamente, os METAMORTEMFASE e o ASSÉDIO, cuja “ficção” dramatúrgica é porventura um dos mais sólidos projectos existentes na cidade. João Pedro Vaz, um dos seus fundadores, mereceu o Prémio Revelação Ribeiro da Fonte em 2000 pelo seu trabalho como encenador do espectáculo (A)tentados, de Martin Crimp. Com uma actividade irregular, há ainda a assinalar os grupos CAIXA NEGRA e TEATRO DE FERRO (que se situa na área do Teatro de Marionetas e Objectos) e a desactivação do grupo CONTRACENA.

* Directora do Rivoli – Teatro Municipal

Entre a contracção e a expansão

Na semana que antecedeu o 25 de Abril de 1974, estavam em cena em Lisboa 10 espectáculos de teatro (entre revistas e textos de Edward Bond, Arthur Miller, Eduardo de Fillipo e Nelson Rodrigues), enquanto que no Porto, o público tinha como única opção Simplesmente Revista no histórico Teatro de Sá da Bandeira, no coração da cidade (1). Pouco mais de duas décadas antes daquela data, o Porto fora cenário de uma experiência pioneira cujas consequências no futuro do teatro português (e portuense, em particular), embora difíceis de avaliar, continuam a merecer a nossa reflexão. Referimo-nos à criação em 1953 do Teatro Experimental do Porto (TEP), por iniciativa de um grupo de pessoas ligadas à cultura na cidade, que conseguiram convencer António Pedro, escritor, artista plástico, e homem de teatro, a assumir a direcção artística do projecto. A importância da experiência realizada entre 1953 e 1960 pelo TEP resulta, como recentemente o sublinhou Carlos Porto (2), da singularidade das suas propostas no contexto da prática teatral então dominante. A actividade do TEP não só antecede a emergência, em inícios dos anos setenta, das companhias “independentes” (expressão utilizada como forma de explicitar a “independência” do ponto de vista estético, ideológico e institucional, dos projectos então emergentes), como contribui de forma significativa para reduzir o atraso do repertório e da “experimentação” teatral em Portugal relativamente aos grandes movimentos estéticos europeus e americanos, bem como para, senão inaugurar, pôr em prática de forma mais regular e sistemática um entendimento globalizante do espectáculo teatral, atento à delicada articulação das diferentes tarefas ligadas ao texto, à interpretação, ao espaço cénico, aos figurinos, à iluminação, ao material sonoro, ao mesmo tempo que, de forma mais decisiva e com algumas décadas de atraso, equaciona definitivamente o papel do encenador. A tudo isto não podemos deixar de associar um entendimento do teatro como forma privilegiada de interpelação do real, e, embora seja difícil a classificação de António Pedro como um artista politicamente empenhado, sem dúvida que muitas das suas opções de reportório traduzem um entendimento dinâmico da articulação entre a arte e a sociedade. São casos exemplares, entre aqueles espectáculos que melhor terão conjugado o sucesso artístico com a adesão do público, as suas encenações de Antígona, numa versão sua da tragédia de Sófocles (1954), Morte de um Caixeiro Viajante (1954), e as estreias absolutas de A Promessa (1957) e de O Crime de Aldeia Velha (1959), de Bernardo Santareno, o mais significativo dramaturgo português das duas décadas anteriores à Revolução, “descoberto” por António Pedro e pelo TEP3. Embora a força interpelativa e a qualidade artística das produções do TEP registem, a partir da saída de António Pedro em 1960, um enfraquecimento significativo, a regularidade da sua actividade e a projecção que alcançara a nível nacional continuaram a assegurar a sua contribuição para a formação de muitos actores, cenógrafos e outros profissionais de teatro que mais tarde, em Lisboa ou no Porto, viriam a firmar as suas carreiras. Necessariamente, e compreensivelmente, mitificado, pela sua contribuição ímpar para a renovação da linguagem cénica, para o alargamento do reportório teatral, para a experimentação de novas técnicas interpretativas e para a conquista de novos públicos, o TEP vive nas décadas posteriores uma história de declínio hesitante, quanto mais não fosse porque, felizmente, o panorama teatral português dos anos 60 surge marcado por novas, e renovadoras, experiências, entre as quais devemos assinalar aquelas protagonizadas pelo teatro universitário. Além de Coimbra, também no Porto o Teatro Universitário do Porto (TUP), fundado em 1948, mas a partir de 1953 sob direcção de Romeu Correia, participa neste esforço de formação, renovação e experimentação (com base em textos de Synge, Thornton Wilder, Tennessee Williams, Aristófanes, Buero Vallejo e Lope de Vega). Esta é uma história ainda por fazer, embora o TUP, à imagem daquilo que aconteceu com o TEP, tenha de forma irregular continuado a contribuir para a formação de sucessivas gerações, sobretudo de actores, que desenvolveram as suas carreiras no Porto (e não só). De regresso ao TEP, registemos que a sua última grande contribuição histórica para a criação teatral terá sido a encenação de Ángel Fácio de A Casa de Bernarda Alba, de Lorca, em 1972. Espectáculo dedicado “às vítimas da repressão sexual”, ficou marcado pelo carácter inovador da leitura cénica proposta, pelo travesti de Júlio Cardoso no papel de Bernarda, que surgia assim como máscara do ditador, num país ainda amordaçado pela censura e pela falta de liberdade política, e pelo trabalho cenográfico de José Rodrigues, um artista plástico muito ligado à cidade do Porto (e que em 1979 voltaria a assinar uma outra “histórica” experiência lorquiana com as suas esculturas para Yerma), que para este espectáculo criava uma espécie de prisão-hospital psiquiátrico, ensaiando novas modalidades de exploração do espaço e dos materiais utilizados para o seu preenchimento.

Depois do 25 de Abril

Voltando ao nosso ponto de partida inicial, podemos acrescentar que em 1974 o Porto conta já com duas companhias de teatro profissional: o TEP e a Seiva Trupe-Teatro Vivo, uma companhia criada (no ano anterior) por elementos insatisfeitos com o trabalho daquela outra estrutura, e que virá a ter como núcleo identificador os nomes de Júlio Cardoso, António Reis e Estrela Novais. Como foi então característico da estratégia de quase todos estes grupos, encontra-se a opção por um teatro mais directamente político, muitas vezes próximo da prática brechtiana, durante tantos anos censurada em Portugal, e agora claramente recuperada ao serviço de um esforço de renovação política e social. Citemos como exemplo das opções dos dois grupos em actividade no Porto o espectáculo A Seiva Conta Catarina na Luta do Povo, estreado logo em finais de 1974, ou os espectáculos baseados em obras de Brecht estreados no ano de 1975, pelo TEP, com encenação de Roberto Merino. A realidade teatral portuense teria necessariamente de vir a manifestar, ainda que com algum atraso e acidentes vários de percurso, os efeitos positivos do esforço de descentralização conscientemente assumido logo depois da revolução, para contrariar a macrocefalia de Lisboa e criar focos culturais nas outras regiões do país. No Porto, a década preenchida pela segunda metade da década de 70 e a primeira metade da de 80 fica marcada pela emergência de novos projectos, uns entretanto continuados e transformados, outros encerrados. Em 1978, confirmando o desenvolvimento que o teatro infantil conhece após a revolução, é criado no Porto uma das mais antigas companhias de teatro para a infância portuguesas, o Pé de Vento, mercê de um núcleo impulsionador (e que se mantém até hoje, dispondo entretanto de um novo espaço, o Teatro da Vilarinha, inaugurado em 1996) constituído pelo encenador João Luiz, pela dramaturgista Maria João Reynaud e pelo cenógrafo Rui Aguiar, estrutura responsável pela revelação de um número significativo de colaboradores (4). No ano anterior ao da criação do Pé de Vento, surge uma outra companhia integrando alguns elementos que também tinham conhecido a experiência do TEP ou do Seiva Trupe (caso de Isabel Alves, Fátima Castro e João Paulo Costa), mas que até 1982 ensaiará uma experiência mais radical de descentralização, radicando-se durante esse período em Viana do Castelo, no Teatro Sá de Miranda; só a partir daquele ano a companhia se instala no Porto. Trata-se do TEAR (Teatro Estúdio de Arte Realista), cujo projecto ficará na história do teatro português associado ao nome de Castro Guedes, um encenador cuja radicalidade experimental marcará a década de oitenta, responsável indiscutível pelo ensaio (por vezes extremo) de um conjunto de práticas aparentemente devedoras das vias abertas pela teorização e pelas experiências concretas de um Meyerhold. Os trabalhos mais marcantes de Castro Guedes acabarão por ser as suas encenações dos textos vicentinos Inês Pereira , Rapsódia Vicentina e O Velho da Horta (entre 1981 e 1983), com o apoio dramatúrgico de Deniz Jacinto, e Os Encantos de Medeia (1983), de António José da Silva, espectáculo ambicioso, desmesurado mesmo, ecléctico, entre o mecanicista e o mais organicamente vitalista, sem dúvida um dos mais significativos espectáculos criados no Porto na década de 80. Embora Castro Guedes tenha continuado a assegurar a direcção artística da companhia até 1987 e o TEAR tenha conseguido manter a sua actividade até inícios da década de 90, alguns dos seus elementos abandonam o projecto em finais de 1983 para, em colaboração com alguns actores que entretanto tinham passado pelo TEP (caso de Rosa Quiroga e João Cardoso), e o encenador Moncho Rodriguez (5) criarem Os Comediantes. Apostados nas capacidades de direcção de actores daquele encenador, os fundadores do projecto declaram-se então programaticamente empenhados no trabalho de actor. Com enormes dificuldades financeiras, a companhia apresenta, nos seus primeiros três anos de actividade, três espectáculos excessivamente desiguais, não só em termos das vias estéticas prosseguidas, como também em termos dos resultados artísticos alcançados, nuns casos (como Ederra, 1984, de Ignacio Amestoy Eguiguren) mais apostada realmente no trabalho de actor, e noutros explorando quase delirantemente a dimensão plástica do espectáculo (caso da revisitação de D. Juan, 1985, de Zorrilla). Depois da saída de Moncho Rodriguez, a companhia revela um encenador possível, João Paulo Costa, actor fundador do projecto, criador de dois belíssimos espectáculos (O Jogo do Amor e do Acaso, 1986, de Marivaux, e O Pássaro Verde, 1988, de Gozzi)6. O final da década de 80 assinala o mais recente e mais dramático momento de contracção da actividade teatral portuense, mercê de um conjunto de circunstâncias onde se misturam a lógica dirigista de uma Secretaria de Estado da Cultura paradoxalmente apostada no liberalismo cultural e numa estratégia presumidamente anti-despesista (7) e a incapacidade de renovação e consolidação de muitos dos projectos ainda activos, nomeadamente o TEP, o TEAR e os Comediantes (8). A crise então vivida pelas três companhias referidas resulta também de um aspecto que marca uma diferença substancial com os projectos de teatro independente que tinham surgido em Lisboa na primeira metade da década de 70: o desaparecimento ou a ausência de figuras, quase sempre encenadores, capazes de assumirem a “autoria” de um trajecto, muitas vezes mais do que um projecto. Embora algo penalizante, do ponto de vista artístico, esta é também uma explicação que talvez sirva melhor para explicar a sobrevivência (e progressivo fortalecimento) da companhia portuense Seiva Trupe, que em 1982 conquistou o maior êxito teatral da década no Porto, com Um Cálice de Porto, um inédito “fenómeno” de popularidade (dois anos em cena), um espectáculo crítico e interveniente, com alguma inventividade a nível do texto e da sua concepção, mas que recuperava as fórmulas tradicionais dos esquemas da revista, agora num espaço decorado como café-concerto da Belle Époque. Uma outra companhia que emerge na primeira metade dos anos 80 é o CENA (a que estão inicialmente ligados os nomes de Júlia Correia, Ana Bustorf, Rui Madeira e António Fonseca), com um percurso curiosamente inverso àquele alguns anos antes trilhado pelo TEAR: sediado no Porto entre 1980 e 1984 (período durante o qual a sua produção mais marcante terá sido Leôncio e Lena, de Büchner, com encenação de Stephan Stroux, exercício extremo de criação de um espaço cénico total, da responsabilidade de Manuel C. Dias), a companhia desloca-se nesse ano para Braga, passando então a designar-se Companhia de Teatro de Braga, representando um dos mais persistentes e bem sucedidos exemplos de descentralização.

Aqui e agora, no Porto

A situação teatral no Porto, nos últimos anos, tem sido sobretudo marcada pela proliferação de novas companhias, em relação directa com a criação e regular funcionamento de estruturas de formação de profissionais de teatro em domínios tão diversos como a interpretação, a cenografia e figurinos, a luminotecnia, a dança, etc. A cidade do Porto dispõe desde inícios dos anos 90 de três instituições de formação de profissionais do espectáculo: duas escolas profissionais (o Ballet Teatro Escola Profissional, criada em 1989, e a Academia Contemporânea do Espectáculo, criada em 1990) e a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Novidade absoluta no tecido teatral portuense, a emergência destas estruturas de formação não poderia deixar de trazer consequências para o teatro produzido na cidade. A situação paradoxal é que estas estruturas, que, sobretudo no caso da ACE, absorveram muitos dos profissionais de teatro locais, com carreiras firmadas durante os anos 80, surgiram precisamente numa fase de contracção da produção teatral, devido ao desaparecimento de algumas das companhias que, como referimos, haviam marcado a década anterior. A alternativa para muitos dos jovens formados por estas escolas foi então a de, aproveitando também um novo entendimento da actividade teatral e consequente revisão da política de subsídios, criar estruturas próprias, avançar com projectos autónomos, coordenando as diferentes competências adquiridas (nas áreas da interpretação, da cenografia e figurinos, da luminotecnia, etc), quase completamente desligados da geração directamente responsável pela sua formação, quando não em ruptura estética e ideológica com ela. Assim, e se excluirmos o Visões Úteis (criado em 1994 por elementos oriundos do CITAC, de Coimbra, que optaram pela cidade do Porto, e pelo encenador brasileiro Paulo Lisboa, entretanto falecido), todos os outros projectos, que datam do período entre 1994 e 1996, resultam da iniciativa de jovens recém-formados por aquelas estruturas: esse é o caso de As Boas Raparigas Vão Para o Céu, As Más Para Todo o Lado (que apresentaram o seu primeiro espectáculo em 1993, embora só se tenham constituído em 1994), do Teatro Bruto, do Teatro Plástico e do Teatro Só. O Visões Úteis, que se propõe “trabalhar numa lógica de obra de arte total”, articulando as formas de expressão teatral com a pintura, o vídeo, a música e a dança, é das poucas destas novas formações que integra um elemento que tem assumido a responsabilidade pela direcção ou encenação de alguns espectáculos, Nuno Cardoso. Outro jovem encenador é António Lago, responsável pelos três espectáculos até agora produzidos pelo Teatro Só (Máquina-Hamlet, de Heiner Müller, que mereceu o entusiasmo da crítica, India Song, de Marguerite Duras e Credo, de Enzo Corman). As Boas Raparigas contam desde o seu primeiro espectáculo com a direcção artística de Rogério Carvalho, um notável encenador que para este projecto dramatizou, por exemplo, Quatro Horas em Chatila, o relato de Jean Genet sobre o massacre de Setembro de 1982, criando uma espécie de oratória, perturbadora e comovente, extremando a atenção à palavra e às suas múltiplas possibilidades de articulação, preocupações que desde sempre caracterizaram o seu trabalho, potenciando o trabalho das jovens intérpretes de onde será justo destacar Maria do Céu Ribeiro e Carla Miranda, fundadoras da companhia. Experiência semelhante, a de colaboração com um encenador experimentado, foi aquela iniciada pelo Teatro Bruto com José Caldas (de que resultaram Tristerra e o Auto do Boi); com o propósito muito claro de “pesquisa fundamentada sobre os comportamentos e o sentir do homem investindo na releitura das linguagens primordiais da criação – cerimoniais e ritualistas – do universo teatral”, esta companhia produziu ulteriormente Abraça-me, o primeiro de um ciclo de espectáculos em torno dos 4 elementos primordiais, com encenação de João Garcia Miguel, criador ligado à actividade da companhia almadense O Olho. Por fim, os fundadores do Teatro Plástico afirmaram-se sobretudo apostados em “privilegiar o lado plástico do espectáculo” e em “apresentar peças inéditas e inovadoras de autores desconhecidos ou pouco divulgados em Portugal”; depois de um primeiro espectáculo sobre texto de Copi, O Frigorífico, encenado por João Paulo Costa, e de Didascálias, de Israel Horowitz, com encenação de São José Lapa, a companhia foi em 1997 responsável pelo maior êxito de público dessa temporada teatral portuense, uma colagem de textos de diversos autores subordinados ao título S.E.X.O. (Sequências Eventualmente Xocantes e Outras) com encenação de António Feio (9). A alteração radical da cena teatral portuense nestes últimos anos, marcada sobretudo pela ousadia dos novos projectos e pela entrada em funcionamento regular do Teatro de S. João, terá também propiciado a emergência do Ensemble-Sociedade de Actores, formada por actores (Emília Silvestre, Jorge Pinto, João Paulo Costa, António Capelo) que na década de 80 tinham, diversamente, participado nos projectos então activos (TEP, TEAR e Comediantes), mas que na corrente década haviam sido absorvidos por actividades docentes e pelas alternativas profissionais criadas pela televisão, naquilo que então se traduziu numa espécie de demissão artística. A sua primeira produção, Lugar Comum, de Lúcia Sanchez, realizada em co-produção com A Escola de Mulheres, de Lisboa, e com encenação de Fernanda Lapa, confirmou o talento e o profissionalismo dos actores, mas deixou também adivinhar as fragilidades de um projecto, como muitos outros, que continuarão a fazer depender a sua continuidade e a formação do seu reportório das articulações possíveis com os encenadores em cada caso responsáveis pelo espectáculo. Esta questão é tanto mais importante quanto, na realidade, um dos problemas com que a actividade teatral portuense previsivelmente continuará a confrontar-se será precisamente a escassez de encenadores, isto é, de criadores de espectáculos. Além dos nomes mais jovens já atrás referidos, um dos poucos actores que, nos últimos anos, tem vindo de facto a apostar de forma sistemática na encenação, tirando partido da necessidade revelada por muitas das estruturas de produção existentes, é Paulo Castro. Actor do TEP durante algum tempo e colaborador de algumas produções do Teatro Nacional S. João, Paulo Castro estreou-se na encenação em 1992 com uma montagem de fragmentos de Beckett, a que se têm seguido colaborações com o TEUC, o TEP, o Balleteatro, Visões Úteis, etc, revelando especial interesse pelo universo de Arrabal, Heiner Müller e Fassbinder. Um outro nome que tem também ensaiado a encenação é João Paulo Seara Cardoso, cuja principal actividade tem sido no domínio do teatro de marionetas. Ele é, aliás, o director de uma das mais singulares, e estimulantes, experiências “teatrais” da cidade, o Teatro de Marionetas do Porto, criado em 1988, dando continuidade de forma mais sistemática e organizada à actividade que já vinha sendo desenvolvida, dispondo de um espaço de apresentação no Teatro de Belomonte, onde em 1994 estreou um dos maiores sucessos da companhia, Vai no Batalha!, para muitos “a melhor revista portuguesa dos anos 90”. Duas outras companhias da cidade que merecem referência, apesar do seu historial muito diverso, são o Teatro Art’Imagem, dirigido por José Leitão e o Contracena, um projecto formado por actores com trabalho desenvolvido no Teatro do Noroeste e no TEP (refira-se Strip-Tease, de Slawomir Mrozeck, apresentado no já antigo espaço do Clube dos Fenianos Portuenses) (10). Uma das mais radicais alterações no tecido teatral portuense resultou, sem dúvida, da recuperação do Teatro Nacional S. João, durante décadas utilizado para a projecção cinematográfica. Objecto de sucessivas e faseadas intervenções de renovação, e depois de uma primeira direcção com uma programação mais pluridisciplinar, mas também mais subordinada à “política dos sinais exteriores de cultura” que marcou o início dos anos 90, o Teatro S. João foi, desde inícios de 1996, dirigido por Ricardo Pais, um dos mais talentosos criadores do pós-25 de Abril. Criador de alguns dos mais marcantes espectáculos das décadas de 80 e 90, com uma considerável experiência na área da gestão cultural, Ricardo Pais apresentou como uma das missões do Teatro Nacional S. João “desenvolver a representação dos grandes repertórios dramatúrgicos, produzindo, co-produzindo ou acolhendo espectáculos portugueses e estrangeiros”, com uma programação capaz de uma desejável abertura estética.

Festivais

Uma outra realidade que valeria também a pena referir, uma vez que é força activa na formação daqueles que vêem e daqueles que fazem o teatro, é a variedade de festivais que anualmente se realizam na cidade. O festival com maior tradição, e com uma sucessão absolutamente regular de edições, é o FITEI (Festival Internacional de Expressão Ibérica), criado em 1978, por iniciativa conjunta do Seiva Trupe e do TEP, embora rapidamente tenha passado a dispor de organização própria. Embora se possam (e devam) discutir os critérios que têm presidido à organização dos sucessivos programas do FITEI, é inegável o contributo do festival na divulgação pioneira entre nós do teatro africano de expressão lusófona, de algumas experiências do teatro brasileiro (a companhia Boi Voador, por exemplo) e da América Latina, além, obviamente, do teatro espanhol, registando a participação de algumas companhias com espectáculos que terão ficado na memória do público de teatro portuense. Outro festival também com uma já longa história (desde 1982) é o Fazer a Festa-Festival Internacional de Teatro para a Infância e Juventude, organizado pelo Teatro Art’Imagem. Outra iniciativa, essa mais recente, do Teatro Art’Imagem foi a organização, a partir de 1995, do Festival Internacional de Teatro Cómico da Maia (na Área Metropolitana do Porto), uma iniciativa que tem registado um extraordinário sucesso de público e que merecia melhores espaços para a sua realização. Outra iniciativa importante, que passou a ser organizada bianualmente, é o Festival Internacional de Marionetas do Porto, da responsabilidade de Isabel Alves Costa, e que tem conseguido trazer à cidade alguns maravilhosos espectáculos nas mais variadas técnicas de manipulação. A partir de 1997, por iniciativa de Ricardo Pais e responsabilidade mais directa de José Luís Ferreira, registe-se a realização no Porto de um novo festival internacional de teatro, o PoNTI (Porto. Natal. Teatro. Internacional.), que tem conseguido trazer à cidade alguns dos mais prestigiados nomes e experiências da cena teatral internacional.

Espaços

Embora durante os anos 80, as diversas companhias responsáveis pela assinalável expansão da actividade teatral que o Porto então conheceu tenham tentado criar, com maior ou menor felicidade, os seus próprios espaços de trabalho, praticamente nada restou desse esforço, uma vez que quase todos eles acabaram degradados ou definitivamente desactivados, esgotados pela sua provisoriedade inicial. Situação que tem obrigado muitas das novas estruturas produtivas a explorar espaços alternativos, não directamente vocacionados para a prática teatral, permitindo nalguns casos estimulantes explorações cénicas, mas noutros limitando a sua actividade. Assim, podemos dizer que o Porto actualmente dispõe de um teatro nacional, o Teatro S. João, de um teatro municipal, o Teatro Rivoli, do Auditório Nacional Carlos Alberto, e do Auditório da Casa das Artes; a estes acrescentam-se outras salas ligadas a diferentes estruturas, tais como a sala da Cooperativa do Povo Portuense e o novo Teatro do Campo Alegre (Seiva Trupe), o Teatro da Vilarinha (Pé de Vento), o Balleteatro Auditório, a sala-estúdio do Teatro Latino; e por último, uma variedade de pequenos (ou excessivamente grandes) espaços que vêm sendo utilizados para a prática teatral: as Moagens Harmonia e o espaço da Alfândega (ambos de futuro incerto), o n.º 40 da Rua de S. João, a sala da Cooperativa dos Fenianos Portuenses, e de todos aqueles que em dado momento as companhias se lembram ou se vêem forçadas a utilizar.

Convulsões provisórias

Escrever sobre o teatro no Porto neste momento de tão intensa agitação é um grande privilégio. E uma tarefa de grande risco também. Este esforço de cartografar uma realidade que vive transformações tão rápidas só é possível com a consciência do valor provisório do mapa que agora se oferece. Colorido, contrastante, sugestivo de relevos que só a realidade futura confirmará ou contrariará. O momento é de optimismo, ainda que moderado, seja pelo que parece irremediavelmente instalado ou pelo muito que ainda haverá a fazer. Faltam, por exemplo, as atitudes adequadas e os espaços, humanos estes, para o desenvolvimento continuado de um raciocínio sobre a arte teatral. Como falta uma estratégia de publicações (de textos dramáticos, de revistas) capaz de alimentar e ampliar o quotidiano da prática teatral (11). Falta ainda completar a verdadeira tarefa descentralizadora, ultrapassando, por exemplo, a dependência que o teatro no norte do país continua a viver relativamente à crítica teatral, centralizada em Lisboa. A identificação do muito que falta não deve, contudo, obscurecer o facto entusiasmante de um inequívoco recrudescimento do interesse pelas possibilidades oferecidas pela expressão teatral. Este esboço crítico pretende-se também como contribuição activa para a qualificação deste notável momento de expansão, esperando ver contrariado o regresso próximo de qualquer contracção, que não seja sinónimo de maior exigência, maior felicidade no diálogo entre as propostas dos criadores e o público a que eles se dirigem.

* Mestre da Faculdade de Letras do Porto

Irresistível nota final

A velocidade e intensidade das alterações na realidade teatral portuense no espaço de cinco anos deveria servir-nos para tomarmos consciência da extraordinária, mas indispensável, “artificialidade” de qualquer exercício retrospectivo ou sistematizador. Embora me pareça ainda válido o esboço que em 1997 propunha para caracterizar a conjuntura que tem condicionado o desenvolvimento recente do teatro no Porto, diversos fenómenos encontraram nestes quatro anos a sua confirmação ou foram sujeitos a transformações significativas. Concedo-me a oportunidade de fazer referência a três ou quatro desses fenómenos. Talvez em primeiro lugar, a radical transformação da quantidade e qualidade da oferta cultural no domínios das artes de palco, resultado da simultaneidade de factores como a programação do Rivoli Teatro Municipal, a nova vida que o Auditório Carlos Alberto conheceu até à presente interrupção para obras e, acima de tudo, a dinâmica revelada pelo Teatro Nacional S. João, sob a direcção de Ricardo Pais. Tratou-se – como estou certo que o tempo virá a demonstrar – de uma experiência ímpar na história do nosso teatro nacional, dimensão que, talvez desde esses míticos tempos do TEP, o teatro portuense não conhecia. No contexto dessa experiência impõe-se registar o lançamento do projecto, também ele único, do Dramat-Centro de Dramaturgias Contemporâneas, que entre 1998 e 2000 foi dirigido por Fernando Mora Ramos. Claro que, em minha personalíssima opinião, tal coincidiu com os únicos anos do Portugal pós-revolucionário em que conhecemos uma verdadeira ideia de cultura, com consequências óbvias na actividade teatral. Pior do que não conseguir prosseguir o trabalho realizado, seria interpretá-lo de forma incorrecta. Um outro factor, senão estruturante, pelo menos de incisiva circunstancialidade, tem sido o investimento municipal, traduzido agora na festa da Capital da Cultura. Menos eufórica é a constatação das muitas debilidades que continuam a afligir a actividade teatral, resultado de uma quase atávica dificuldade de se pensar globalmente e não, como habitualmente, numa óptica limitada à “produção”. O facto é que, ao mesmo tempo que novos e antigos valores e estruturas se vão afirmando, revelando energia, ideias e tenacidade, subsistem problemas como o dos espaços, físicos e “humanos”, das publicações, da reflexão articulada de propostas e projectos, perpetuando fragilidades que, embora de alcance nacional, mereceriam alguma mais imaginativa intervenção local.

NOTAS

1 Informação que recolhemos em Carlos Porto et al, Dez Anos de Teatro e Cinema em Portugal: 1974-1984. Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
2 Referimo-nos a O TEP e o Teatro em Portugal: histórias e imagens. Porto. Fundação Eng. António de Almeida, 1997.
3 Outros espectáculos sublinhados por Carlos Porto, são As Guerras de Alecrim e Manjerona (1956), revisitação do texto de António José da Silva, Jornada para a Noite (1957), de Eugene O’Neill, e O Morgado de Fafe Amoroso (1958), de Camilo Castelo Branco.
4 Entre escritores de teatro para a infância, como Manuel António Pina e Álvaro Magalhães, cenógrafos (Rosa Ramos), pintores (Rui Aguiar, Rui Pimentel) e músicos (Jorge Peixinho, Cândido Lima).
5 Um encenador que marcou inquestionavelmente o teatro portuense na década de 80 e contribuiu para a formação de uma importante geração de actores. A sua passagem pelo TUP, no início da década, dá origem a três interessantes espectáculos: Os Últimos Dias da Solidão de Robinson Crusoé, No Ventre do Cavalo (1981), de Henri Lefebvre, com um notabilíssimo dispositivo cénico, e O Fado do Bandido (1982). Logo a seguir, entre 1982 e 1983, assina cinco encenações no TEP, de que será justo destacar, pela invulgar imaginação plástica, Uma História, a partir de Ramuz/Stravinsky, e Quase um Conto de Fadas, de António Buero Vallejo. Em 1981, colaborara também com o TEAR assinando um dos seus melhores espectáculos: Laudamuco, Senhor de Nenhures, de Roberto Vidal, numa ainda então pertinente e implacável reflexão, ritualizada ou cerimonializada, sobre a ditadura.
6 Será justo referir ainda uma outra companhia que atravessa a primeira metade dos anos 80, beneficiando da maior atenção concedida ao teatro para a infância, o Realejo, sob a direcção de Vítor Valente, nomeadamente com um espectáculo como Sementiga Plum… Ou em Terra de Olho Quem Tem Rei é Cego. Contudo o grande espectáculo desta companhia foi Abeliomonstro, uma experiência inédita entre nós de “luz negra”, de notável imaginação e apuramento técnico, aliados a um propósito ainda crítico e interveniente.
7 A iniciativa, inédita, da então Secretária de Estado da Cultura Teresa Patrício Gouveia, foi a de atrofiar economicamente algumas das companhias portuenses – TEP, TEAR e Comediantes – para as levar a aceitar o seu “convite” de fusão dando origem a uma nova estrutura produtiva.
8 Não obstante a diversidade de percursos entretanto traçados, devido à sobrevivência de indefinições artísticas bem como aos condicionalismos impostos pela política de subsídios, o TEAR e os Comediantes ensaiaram ainda a produção conjunta de três espectáculos no ano de 1990, sob direcção de Rogério de Carvalho, que traz a trabalhar consigo o cenógrafo José Manuel Castanheira, com quem em Lisboa realizara alguns dos mais notáveis espectáculos da década que então findava. A experiência mais interessante terá sido Combate de Negro e de Cães, de Bernard-Marie Koltés. Para o TEAR, Rogério de Carvalho encenou ainda Paraíso à Vista, de Fassbinder, e O Cerejal, de Tchekov.
9 Se entre os diversos actores e actrizes revelados se torna muito difícil destacar algum nome, será talvez mais significativo sublinhar, até pela singularidade do facto no tecido teatral portuense, a emergência de jovens profissionais na área da cenografia e figurinos, como é o caso de Francisco Alves (Teatro Plástico), Ana Luena (Teatro Bruto), Arminda Sousa Reis (Teatro Só), que se vêm assim juntar a nomes mais consagrados ao longo da década de oitenta como Moura Pinheiro, Rosa Ramos ou Cristina Costa, entre outros.
10 Entre outras estruturas existentes, com uma actividade mais irregular e/ou sem apoio institucional ou perfil profissional, importará ainda referir a existência de mais quatro experiências: o Teatro Latino, (associado ao nome de Óscar Branco), o ARAMÁ, o ENTRETANTOteatro, desde 1996 sediado em Valongo, e o C.A.I.R.-T.E. (Centro Armado de Investigação e Reflexão do Teatro).
11 São de registar os primeiros esforços que vêm sendo feitos pelo Teatro Nacional S. João, através do cuidado colocado na edição dos seus programas e outra publicações, bem como pela edição de alguns dos textos aí recentemente produzidos. (Uma iniciativa, que com base num esforço conjunto, talvez se pudesse alargar às outras companhias.)

Texto retirado de: http://www.arkitectura.net/folha4/FOLHA16.htm

Written by Jorge

Julho 14, 2008 às 3:43 pm

Uma resposta

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  1. Belissimo texto a documentar um pouquinho o teatro tripeiro. Bravo e obrigado.

    António Pedro

    Setembro 18, 2009 at 5:42 pm


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